Saturday 30 July 2016

Retiro Zé dos Pacatos na antiga Estr. de Sacavém

   (...) Quintarolas onde se ouvia o chiar da nora e se podia, antes ou depois da refeição, ir dar um salutar passeio pelos rêgos das couves e outras hortaliças, ou vêr o boisinho que fazia andar os alcatruzes e visitar os estábulos e as barracas dos trabalhadores.


A Estr. de Sacavém tinha seu começo no cunhal da Igreja de Arroios, do lado da sacristia, onde se lia o respectivo letreiro municipal, posteriormente substituído por Rua Alves Torgo, e estendia-se até Sacavém, encontrando-se neste longo trajecto os Retiros, também conhecidos por Hortas porque todos eles dispunham de tratos de terrenos, mais ou menos extensos, onde, nos espaços anexos à parte urbana, se estabeleciam os caramanchões engalanados com arbustos e vegetação própria, seguindo-se-lhe cultura hortense bem cuidada, com esmero e rigor, das espécies vegetais de consumo constante, vivificadas pela água que a vigilante nora mourisca, em seu característico chiar, lhes distribuía por intermédio dos alcatruzes que o pachorrento boi, de olhos vendados e inalterável andamento, fazia mover, prestando sua ajuda ao rústico labor. A estas atraentes locandas acorriam todas as camadas sociais, constituindo assim centros de reunião com freguesia especial que lhes era assídua.

Os Pacatos na Estr. de Sacavém [c. 1940]
Algures entre a Rua Alves Torgo  e o Areeiro
Eduardo Portugal, in AML

Para se ir ás hortas, metia-se a gente num carrão ou char·á·bancs que, às tardes, se postava em S. Domingos, junto às grades, com a sua imperial de bancos em anfiteatro, por cima do veículo, três muares derrancados que a puxavam, cocheiro e condutor de grandes melenas.
Pagava-se um pataco pelo transporte até à Estrada de Sacavém, onde os principais retiros eram a Perna de Pau e o Zé dos Pacatos [propriedade de José Joaquim Pereira Caldas], o primeiro onde trabalhavam de cozinheira a tia Gertrudes e a gorda Basalisa, que teve, mais tarde, um retiro com o seu nome e acabou em costureira do Teatro do Príncipe Real, e o segundo, onde havia um criado galego, baixo, pançudo, nariz arrebitado, tipo de gnomo, conhecido pelo Bitoque, que acabou em criado da Floresta.
O Bitoque, que era popularíssimo, tinha imensa graça e descompunha os fregueses. Se lhe pediam qualquer vianda que demorava, respondia imediatamente:
 — Espere!. Vá você buscá-la! Eu não sou seu criado, sou criado do patrão!
Uma tarde, fui jantar ao Zé dos Pacatos com Fialho de Almeida, grande amador dos petiscos das hortas, e D. João da Câmara, que, a convite nosso, ia fazer a sua iniciação. Veio a sopa, trazida pelo Bitoque, cuja biografia contámos ao grande dramaturgo, e êste, metendo acolher à bôca e queimando-se, gritou:
 — Ó Bitoque! olha que esta sopa está quente!
O gnomo aproximou-se do prato de D. João da Câmara, meteu-lhe dentro o rechonchudo fura-bolos, levou-o à bôca e chupou, declarando logo, com um enorme descaramento:
 — Não acho!
Foram canas e canetas para o mimoso poeta não lhe partir a cara, custando a convencê-lo de que todos davam ao Bitoque a maior liberdade.
O galego apressou-se em trazer nova sopa e tais artes teve de se insinuar no ânimo de D. João da Câmara, que este, quando ia ao Zé dos Pacatos, não queria outro servo. [1]

Os Pacatos na Estr. de Sacavém
Gravura de J. Novaes, in Lisboa, Alfredo Mesquita, p. 573, 1903 (1.ª Ed.)

Bibliografia:
[1](Olisipo: boletim do Grupo "Amigos de Lisboa", «Os petiscos de Lisboa e o Carnaval», por Eduardo Fernandes (Esculápio), n.º 17, pp. 39-40, Janeiro 1942)

1 comment:

  1. Absolutamente delicioso. É didáctico e um excelente trabalho de pesquisa e divulgação da história da capital. Obrigado.
    Alberto Corte Real

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